É DE PEQUENO
QUE SE VIRA FERA.

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O QUE FAZER COM CRIANÇAS QUE NÃO RESPEITAM NINGUÉM


SOCIEDADE / COMPORTAMENTO

Eles são uns capetas
Por que crianças e adolescentes que têm família estruturada e boas condições financeiras extrapolam os limites do mau comportamento – e o que fazer com eles

Francine Lima e Juliana Arini

Eduardo (alguns nomes nesta reportagem foram trocados para preservar a privacidade) faz 18 anos neste mês, mas ainda não terminou o 2.º ano do ensino médio. Ele foi forçado a sair do colégio tradicional e caro em que estudou por 12 anos, em São Paulo, por causa do seu jeito rebelde e agressivo. “Acho que fui o pior aluno da história dessa escola”, diz, sem demonstrar arrependimento. Eduardo até sorri ao listar suas ousadias. Conta que distribuiu apelidos pejorativos e alguns sopapos por motivos fúteis, tumultuou aulas, discutiu com professores, humilhou colegas. “Uma vez, mijei na mala de um moleque”. Os porteiros da vizinhança também já foram alvos da sua malvadeza, na forma de palavrões e ovos. O que há com esse menino?

Depois da expulsão, pais de seus antigos colegas, num misto de raiva e alívio, telefonaram para a casa de Eduardo dizendo que ele tinha recebido o que merecia. Na versão do colégio, Eduardo não era o líder que imaginava ser. Era apenas um mau exemplo para os demais alunos. O regimento da instituição exige dedicação e disciplina. Além de desrespeitar professores e alunos, o garoto ia mal nas provas e se recusava a estudar. Já tinha repetido dois anos de curso e rumava para a terceira repetência. Então, numa reunião de conselheiros, a decisão foi tirá-lo de cena.

A versão de Marta, mãe de Eduardo, é um pouco diferente. “Ele é um bad boy, mas não é mau.” Ela vê o filho como um adolescente normal e queixa-se da decisão da escola. Diz que todo o dinheiro que investiu ali merecia uma atenção melhor. “Como ele pode não ter o perfil desse colégio se estudou lá a vida toda?” Marta sabe que o filho não faz o tipo estudioso. Queria que o colégio “de grife” mudasse isso. Talvez tenha posto muita ênfase na responsabilidade do colégio – e pouca na própria e na do menino.

O que chama a atenção em casos como o de Eduardo é a dificuldade em explicar sua conduta antissocial. Quando deparamos com notícias como a do menino de 12 anos detido em dezembro, em São Paulo, após ter roubado o nono carro em um ano, tendemos a concluir que ele é um fruto do ambiente em que vive: a pobreza, a falta de perspectivas, as más influências, a estrutura familiar precária. Essas explicações soam bem menos convincentes para entender Eduardo, um rapaz boa-pinta, que se expressa bem, tem uma família tradicional e recebe carinho, mesada, estudo.

Ele parece ter pouco a ganhar, e muito a perder, com seu desafio às regras. Assim como Thiago, um garoto de classe média alta que foi expulso de duas escolas após uma sequência de atos violentos contra colegas de turma (leia sua história no quadro). Assim como milhares de crianças e adolescentes indomáveis, no mundo todo, em lares que supostamente têm tudo para lhes oferecer uma boa educação (pai e mãe presentes, conforto material, uma boa escola).

Em seus vários matizes – da criança que grita com os pais aos jovens delinquentes -, a a dificuldade de transmitir valores e hábitos saudáveis aos filhos se tornou onipresente. Vem daí o sucesso de programas de televisão como o Teen angels (Anjos adolescentes), criado em 2004 pela rede britânica BBC (levado ao ar no Brasil pelo Fantástico, da TV Globo), ou o americano Supernanny, da rede ABC, em sua quinta temporada (reproduzido no Brasil pelo SBT). A tônica desse tipo de programa é mostrar como se lida com um tipo de mau comportamento para o qual já não adiantam sermões, advertências e castigos. A necessidade crescente de orientação para pais também tem alimentado o mercado de livros de autoajuda com títulos que se propõem a dar receitas para educar os filhos.

Desde fevereiro, essa questão ocupa o horário nobre da televisão brasileira. Um dos personagens centrais da novela Caminho das Índias, de Glória Perez, na TV Globo, é Zeca, um jovem que já se envolveu em inúmeros conflitos com colegas e chegou a ser mandado para um juiz por sua agressividade. Na novela, a permissividade dos pais parece ser a grande causa do comportamento de Zeca (vivido pelo ator Duda Nagle). Bastou isso para que o Blog de Glória Perez fosse invadido por uma briga entre pais e educadores – uns responsabilizando os outros pelos descaminhos do comportamento das crianças e adolescentes.

É provável que ambos tenham sua parcela de razão – e de culpa. O fenômeno dos meninos que fogem ao padrão de comportamento põe em xeque a forma como educamos as crianças hoje. A começar pelo papel dos pais e da escola, que anda meio confuso. Algumas décadas atrás, o modelo era claro: os pais falavam, os filhos ouviam; a escola ensinava, os alunos aprendiam. E a rebeldia era tratada com palmada. Hoje, a tônica é procurar o diálogo. Pode-se creditar essa mudança ao processo de democratização, que teria contaminado a dinâmica de poder na família. Ou à onda hippie, que influenciou tantos pais. Ou aos avanços da neurologia, pelas descobertas de que o aprendizado tem muito mais a ver com o prazer que com a disciplina. Ou à disseminação de conceitos da psicologia.

Qualquer que seja a explicação, o fato é que raros pais, hoje, desejam assumir o papel ditatorial que era tão comum nos tempos de nossos avós. Nas escolas, seja por uma mudança cultural, seja pelas leis que protegem os direitos dos alunos, o processo é o mesmo.

O problema é que, uma vez tomado o rumo do diálogo, não é mais só a vontade dos pais e professores que conta. E os filhos parecem nascer com uma capacidade de identificar pontos fracos para dobrar, driblar ou tripudiar sobre a autoridade.

Para o professor de psicologia da USP Yves de La Taille, pais e filhos não se entendem porque vivemos uma crise de valores morais. “Os valores de hoje estão voltados para a competitividade, a fama, a beleza e a pressa.” Ele critica a família que apoia a valorização da competição em detrimento da ética e depois leva o filho ao psicólogo para consertar o estrago. “A única saída é educar moralmente, com base na generosidade, na justiça e no respeito.”

Além das falhas de educação, pesquisadores têm apontado outras explicações. Uma delas é a genética. Segundo o psiquiatra americano Jeffrey Burke, da Universidade de Pittsburgh, estudos recentes mostram que filhos de pais com algum transtorno comportamental têm mais chances de desenvolver o mesmo transtorno, independentemente do tipo de criação que recebam. Quer dizer: a tendência à má-educação pode ser uma característica inata.

Outro estudo citado por Burke, publicado no ano passado, mostra o mecanismo de construção do mau comportamento. Os pesquisadores observaram a relação entre as atitudes de crianças rebeldes e de seus pais. Quando as crianças desobedeciam, os pais costumavam reagir com fúria. Isso levava as crianças a ficar mais nervosas, desobedecer mais – e provocar respostas mais ríspidas. Trata-se de um ciclo vicioso. “Ao longo do tempo, a criança com problemas muda mais o comportamento dos pais que o oposto”, afirma Burke.

Outra explicação para o mau comportamento é médica. Na lista de possíveis causas da desobediência crônica estão o desequilíbrio hormonal, doenças associados e uma infinidade de fatores de risco. Nos consultórios de psiquiatras, um dos diagnósticos mais comuns hoje é o transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Se uma criança é distraída e impulsiva, com baixo desempenho escolar, já é candidata ao diagnóstico. Segundo o IBGE, o TDAH afeta 5% da população brasileira. Segundo pesquisas internacionais, o transtorno aumenta em oito vezes o risco de o portador ser expulso da escola por indisciplina – e 40% dessas crianças abandonam os estudos. A origem do TDAH está em alterações na região frontal do cérebro, responsável pela inibição de comportamentos inadequados. Essas alterações reduzem a produção de dois neurotransmissores, a dopamina e a noradrelamina.

O defict das duas substâncias químicas pode ser corrigido com medicamentos, mas muitas famílias resistem a tratar um filho com remédio de tarja preta. Foi o que aconteceu com um estudante americano de Maryland. Ele começou a nadar aos 7 anos, depois de ter sido diagnosticado com TDAH. Era muito agitado, não conseguia prestar atenção às aulas da escola e questionava tudo o que lhe diziam para fazer. A natação era uma forma de canalizar sua energia. Aos 11 anos, ele resolveu parar de tomar pílulas para controlar a hiperatividade – o medicamento era administrado na escola e o fazia sentir-se diferente dos outros. O menino acabou provando que era diferente mesmo: ganhou oito medalhas de ouro nas Olimpíadas de Pequim, no ano passado. Mas Michael Phelps não se livrou inteiramente do que sua mãe classificou como “decepcionante comportamento incomum”, num livro a ser lançado neste ano nos Estados Unidos. Ela se refere a sua prisão, em 2004, por dirigir embriagado e ao episódio em que foi filmado com um cigarro de maconha.

Segundo Iane Kestelman, psicólogo familiar e presidente da Associação Brasileira de Deficit de Atenção (ABDA), um portador do TDAH que não receba tratamento na infância pode tornar-se um adulto mais propenso ao suicídio, ao abuso de drogas, a acidentes violentos com veículos e à gravidez precoce. “Se uma criança indisciplinada não recebe tratamento adequado e, pior, também é excluída do ensino, o caminho na vida adulta pode ser a marginalidade.”

Outra explicação médica para a desobediência crônica é o transtorno opositivo-desafiador (TOD). A criança com TOD é impulsiva, irritadiça, vingativa e rebelde. Quando faz algo de errado, tende a pôr a culpa nos outros. A causa é uma incógnita. A hipótese mais aceita é de uma predisposição genética. Alguns especialistas acreditam que o transtorno opositivo-desafiador, quando não tratado, pode evoluir na adolescência para um mais grave, chamado de transtorno de conduta. É o nome oficial da delinquência.

Como saber se o mau comportamento é de fato um transtorno ou mera falta de educação? As fronteiras são pouco claras. Em alguns países, duvida-se até da existência do TOD. “Esse conceito é mais usado na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na França, ele não é muito aceito”, diz o psiquiatra da infância Marcos Mercadante.

Os escassos estudos brasileiros na área de saúde mental infantil mostram que esses transtornos afetam algo entre 2% e 5% das crianças em idade escolar, em todas as classes sociais. O recém-criado Instituto Nacional de Psiquiatria do desenvolvimento pretende conduzir uma série de estudos pelo Brasil a fim de detectar precocemente e tratar crianças que apresentem os sintomas e fatores de risco para os transtornos mentais mais comuns. O projeto tem uma verba de R$ 7 milhões do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CPNq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Nada disso exclui a responsabilidade das famílias e das escolas. Pais e professores devem prestar atenção às birras das crianças e dar um jeito de domá-las. Na falta de manuais, cada um encontra seus mecanismos de defesa por tentativa e erro. Muito erro.

Quando a criança se recusa a obedecer, o mais comum é partir para os berros e palmadas. O resultado, em geral, é uma criança ainda mais desafiadora. “Os pais comumente viram reféns do filho, e ele vira um pequeno ditador”, afirma a psicanalista infantil Anne Lise Scapatticci. A inversão dos papéis seria uma consequência do despreparo dos pais para impor sua autoridade. A criança tem necessidade de ser guiada por regras, senão fica perdida. “Muitos dos casais que trazem seus filhos para a terapia não têm intimidade entre si e não decidem juntos o que querem que a criança aprenda.”

O mesmo problema é observado pela psicopedagoga Luciana Maria Caetano, autora de O conceito de obediência na relação pais e filhos. “A cada hora, os pais agem de um jeito, conforme as situações que aparecem. Não há coerência nas atitudes.” O sonho de Luciana é abrir uma escola para ensinar os pais a educar os filhos. Ela ensinaria aos adultos a maneira correta de falar com as crianças para ser obedecidos, mesmo quando existisse um transtorno de origem genética. Em tese, as regras seriam transmitidas e repetidas pelos pais aos filhos, sempre com calma, sem gritaria, sem reações emocionadas, sem barganha. Parece fácil? Se você achou isso, é porque não tem filhos...

Uma consequência dessa visão moderna de que não se pode mudar o comportamento da criança se os pais não mudarem é a proposta de terapia familiar.

Praticamente todos os especialistas ouvidos para esta reportagem afirmaram que os resultados são melhores quando os pais também aceitam que têm de mudar. Antes de partir para essa solução, é importante descobrir se a criança está reagindo emocionalmente a uma situação passageira, como a perda de um ente querido, o nascimento de um irmão ou a separação dos pais.

Em qualquer terapia, é crucial levar em conta as escolhas da criança ou adolescente. Eles só assumem determinados comportamentos porque enxergam vantagens neles. Eduardo diz que ser “bad boy” lhe traz amigos, garotas, respeito. Diz que nas poucas vezes em que foi “bonzinho” se deu mal, principalmente na parte afetiva. “Acho que não nasci bad boy, só fui me tornando cada vez mais...E não pretendo abandonar a carreira tão cedo. Hahaha!” Um dos principais desafios é romper a sensação de recompensa do mau comportamento (seja a atenção recebida dos pais, seja o status, real ou imaginário, de líder, seja a sensação de que os investimentos psicológicos de longo prazo não valem a pena).

Algumas escolas têm adotado posturas criativas para lidar com crianças-problema. Uma estratégia são os comitês internos, assembleias de classe em que os alunos debatem as situações que os incomodam e refletem sobre as consequências de sua conduta. “Isso ajuda a reduzir o nível de tensão e mostra que a vida em sociedade precisa também de regras e deveres”, diz Lady Christina Sabadelly, coordenadora de ensino do Colégio Pueri Domus, de São Paulo.

“Em 90% dos casos, conseguimos reintegrar até alunos mais rebeldes.” Há punições estabelecidas pelo grupo. Por decisão da assembleia, uma aluna teve de pintar as paredes do banheiro para cobrir as ofensas que havia pichado contra uma colega. “Conversamos muito com a garota e a família, e o problema foi resolvido. Ela nunca mais teve nenhum tipo de conduta agressiva.

Em geral, as escolas colocam um limite para sua responsabilidade nessa educação moral. Lauro Spaggiari, diretor-pedagógico do quase centenário Colégio Dante Alighieri, de São Paulo, diz que alunos com problemas sérios de comportamento são raros, mas já teve de recusar a rematrícula de alguns. Isso pode ficar mais difícil no futuro próximo. O Ministério da Educação está para assinar uma portaria que orientará as escolas a incluir alunos com transtornos de aprendizagem, exatamente como fazem com os estudantes com deficiência visual ou auditiva. Com base nessa portaria, ficará mais fácil para as famílias contestar a expulsão de um filho.

Algumas escolas que se especializaram em receber alunos difíceis têm práticas que podem servir de exemplo. “Muitos de nossos alunos já passaram por mais de uma escola, foram expulsos ou classificados como incapazes de aprender”, diz Suely Palmieri Robusti, diretora do do colégio Novo Ângulo Novo Esquema (Nane). Eles chegam com a autoestima abalada, estigmatizados por tantos anos como crianças problemáticas. Mas têm condições de se recuperar. “Todo mundo pode aprender, mesmo que demore um pouco mais.”

No Nane, os melhores professores são os considerados mais criativos, maleáveis e capazes de cativar o aluno. A relação com a família também muda. A estratégia da educadora é estabelecer um trato com os pais e o aluno: a criança só volta ao convívio coletivo depois de melhorar sua conduta. “Se eu disser que o aluno deve fazer lições em casa e a mãe, em vez de seguir minhas indicações, levar o menino ao shopping, ela estraga todo o processo.”

No colégio Winnicott, que tem uma proposta semelhante à do Nane, a reação dos educadores diante de um aluno descontrolado nunca é improvisada. “Quando vejo que o aluno chegou à escola de cara amarrada, já vou conversar com ele para saber o que aconteceu em casa antes de ele vir”, diz a orientadora educacional Andreia Balestrero. “Assim, já aviso a professora e todos ficamos alertas para o comportamento dele durante a aula.” Ouvir a família é a segunda parte do processo. Em alguns casos, o psicólogo e outros eventuais profissionais que cuidam do aluno também são chamados para a conversa. Várias conversas. Em reuniões frequentes, todos expõem suas dificuldades e buscam juntos uma estratégia. A diretora do Winnicott, Elizabeth Polity, que é também terapeuta familiar e autora de livros sobre problemas de aprendizagem, afirma que o sistema só funciona quando, em vez de empurrar o problema para o outro, todos falam a mesma língua. “Se percebo que os pais estão perdidos, precisando de orientação, propomos que também entrem na terapia.”

Essa integração faz a diferença na vida de Beto, aluno do Winnicott há sete anos. Ele chegou ali aos 12 anos, depois de mudar de escola seis vezes e ficar marcado como um aluno de “pavio curto.” Toda vez que acontecia alguma coisa chata, não suportava a frustração e quebrava tudo. Literalmente. Mesmo no Winnicott, quebrou uma janela ao lançar seu materialcontra o vidro num acesso de raiva. Seu pai, Arnaldo, fez até pós-graduação em pedagogia em busca de respostas. Com as reuniões no novo colégio, aprendeu que não podia conter os surtos de Beto com mais agressividade. “O castigo é uma forma forte de atenção. E o que as outras escolas mais faziam era castigar meu filho.” Hoje, Beto está com 19 anos. Já faz dois anos que não vai à terapia e sente-se bem em sua turma de alunos especiais. Já não acha que é diferente de todo mundo.

Amor demais atrapalha

Na ânsia de preparar os filhos para o futuro, muitos pais extrapolam no carinho e nas atividades educativas. Que tipo de filho eles criam?

Martha Mendonça

Todos os pais querem que seus filhos sejam bem-sucedidos. E a receita é clara: como na infância nosso cérebro é mais propenso ao aprendizado, basta desenvolvê-lo ao máximo, desde o mais cedo possível. Infelizmente, ninguém consegue prever o futuro – e portanto não há como saber quais habilidades serão mais importantes quando nossos pequenos tesouros virarem adultos. O que faz um bom pai, nesse caso? Claro! Aposta no máximo de atividades. Escola bilíngue, curso de uma terceira língua, iniciação musical, aulas de etiqueta, ginástica, natação...No tempo livre, por que não aproveitar para divertir as crianças com um bom DVD educativo?

Mas esse investimento todo não vai valer nada se não soubermos proteger e amparar as crianças de todos os perigos desta vida. Então é preciso aceitar o sacrifício de levá-las e trazê-las de carro de todos os compromissos e manter a constante possibilidade de contato pelo celular – esse moderno e abençoado cordão umbilical tecnológico.

Só há um pequeno porém com essa receita. Na verdade, dois. O primeiro é que segui-la sai um pouco caro, tanto em dinheiro como em preocupações. O segundo é que...essa fórmula pode dar errado. Bem errado.

Depois de umas boas décadas em que grande parte dos psicólogos, educadores, cientistas e empresários estimulava o esforço pelo desenvolvimento planejado das crianças, estamos vendo agora um novo fenômeno: o combate ao excesso de zelo dos pais. Uma recente reportagem da revista americana New Yorker define o fenômeno como overparenting. Trata-se dos hiperpais, pais superprovedores – ou simplesmente pais demais. Eles são o avesso dos pais negligentes. Protegem demais, são indulgentes demais e sentem uma ânsia que o leva a resolver todos os problemas das crianças. Alguns desses espécimes atendem pelo apelido de pais-helicóptero, porque estão sempre, de alguma maneira, “sobrevoando” os filhos, impedindo que encontrem suas próprias saídas e tenham seus momentos de solidão e brincadeira. Esses momentos são imprescindíveis para que as crianças aprendam a pensar por si próprias – e se tornem adultos independentes e conscientes. O novo discurso é que nada substitui a brincadeira como atividade para desenvolver a inteligência e as habilidades sociais, e a melhor maneira de um adolescente aprender algo é pelo método de tentativa e erro.

Até no campo da medicina esse discurso vem ganhando força. Um dos comportamentos mais comuns dos hiperpais é o cuidado extremo com a higiene. E quem poderia condenar isso? Os médicos. Peter Liquornik, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria, é um exemplo.

“Muitos bebês ficam com seu amadurecimento imunológico comprometido pela mania de limpeza e esterilização dos pais. A natureza faz a criança engatinhar e colocar tudo na boca porque é assim que ela vai criar suas defesas”, diz. Segundo Liquornik, existe hoje uma superproteção das crianças, que muitas vezes ficam impedidas de brincar, de se sujar, em nome de uma higiene exacerbada. Ninguém precisa entregar bolas de sujeira para os filhos lamberem, mas, se eles não tiverem algum contato com as imperfeições do mundo, não criarão anticorpos suficientes.

Isso vale não apenas para vírus e bactérias. “Se não há dificuldades na vida das crianças, elas não vão desenvolver muitas habilidades”, diz a americana Hara Marano, editora da revista Psychology Today e autora do livro A nation of wimps: the high cost of invasive parenting (Uma nação de fracos: o alto custo da paternidade invasiva), lançado em 2008. “É como amarrar os sapatos: na primeira, na segunda ou na terceira vez eles não conseguem. Em vez de amarrar para eles, deixe que andem com os cadarços soltos de vez em quando. Vão começar a tentar sozinhos até aprender.” Marano acredita que os valores ocidentais de competitividade tenham gerado essa “hiperpaternidade” no mundo contemporâneo. “Os pais foram tomados por uma enorme ansiedade, focada na vida dos filhos. Querem resolver o futuro deles agora, querem ser eficientes. Mas a eficiência é um valor da profissão, não da criação de um filho.”

O celular ajuda a reforçar essa síndrome, dia Marano. “Com ele, os hiperpais podem ligar sem necessidade real para os filhos, apenas como forma de suavizar suas próprias ansiedades.” E as crianças são levadas a criar o costume de falar com os pais por qualquer mínimo motivo. “Aos 7 anos, muitas crianças já trazem o celular para a escola”, diz Fernanda Carísio, coordenadora educacional do Colégio Cruzeiro, tradicional escola do Rio de Janeiro. “Mesmo a gente pedindo em toda reunião de pais que não deixem as crianças vir com telefone para a escola.” Segundo Carísio, os pais sentem culpa por passar muito tempo longe dos filhos e encaram o celular como um elo. “Só que as crianças não entendem e fazem o uso que acharem melhor.” Uma pesquisa da Fundação Telefônica e da Universidade de Navarra, feita no mês passado entre estudantes paulistas, concluiu que 51% das crianças entre 6 e 9 anos têm celular próprio.

O foco intenso na criança é o cume de um processo que começou por volta do século XV. Até a Idade Média, a infância não era valorizada. A partir do desmame (aos 3 ou 4 anos, naquela época), ela passava a viver no mundo adulto. Não havia escolas formais e a própria família não era nuclear. Conviviam na mesma casa pessoas de várias procedências. Com o início da Idade Moderna, a revolução liberal e, mais tarde, o Iluminismo e a formação da burguesia, o cuidado com a criança e os laços familiares se fortaleceram. Pais e filhos ficaram mais próximos, e a criança passou a ser vista como um indivíduo em formação, que precisa de atenção e tratamento especial.

Até ai, tudo bem. Mas hoje parece que não há apenas uma infância, e sim várias. O mercado de quartos infantis mostra isso. Há uma proposta de ambiente para cada idade. “O quarto cresce com a criança”, diz a arquiteta paranaense Kethlen Durski. “Há berços diferentes, camas que vão aumentando de tamanho, cores propícias para cada momento e até uma iluminação apropriada para cada fase.” Há quem coloque tapete de borracha pela casa para que a criança não se machuque ao engatinhar ou mesmo retire a maioria dos móveis da sala de estar (outra prova de excesso de zelo: a criança deve aprender a cair, diz a nova teoria).

A supervalorização do aprendizado na infância começou nos anos 80, quando pesquisas científicas comprovaram a plasticidade do cérebro do bebê e da criança pequena. “Aí surgiram as ideias de estimulação precoce que hoje levam a um exagero”, diz a psicanalista carioca Silvia Zornig, autora de A criança e o infantil em psicanálise. Junto com essa cobrança exagerada paradoxalmente vem a falta de limites. “Os hiperpais confortam demais, protegem demais, toleram demais, envolvem seus filhos o tempo todo, diz a pediatra e escritora americana Marilyn Heins, dona de um site de dicas para os pais (parentkidsright.com). “As crianças nãoconseguem respirar diante desse contato exacerbado.” Sobre os hiperpais, Heins é peremptória: “O bom pai é aquele que tem a coragem de entregar seu filho para o mundo. Quem não faz isso está subestimando a criança e atrapalhando seu futuro e sua felicidade. A mensagem que está sendo enviada para a criança é: você não é bom nem inteligente o bastante para ser bem-sucedido, seja lá no que for.”

Os hiperpais costumam ser implacáveis na questão do desenvolvimento intelectual ou físico. Em São Paulo, proliferam personal trainers infantis – professores de educação física especializados no atendimento individual de crianças e adolescentes. Luiz Ricardo Rhormens atende hoje dez crianças. Diz que a demanda é cescente. A maioria são crianças acima do peso ou que os pais consideram tímidas para os esportes coletivos. Fazem principalmente natação, caminhada e corrida. “Os pais cobram retorno, querem que a criança se compromete com metas. Algumas são bastante neuróticas, e eu tento melhorar essa relação.”

Diretora da escola de dança Petit Danse, que tem três unidades em bairros de classe média no Rio de Janeiro, Nelma Darzi diz que a procura aumenta a cada início de ano letivo. “Muitas delas vêm de outras atividades ou vão para outras depois de sair daqui. Não é raro vermos alunos dando sinais de cansaço. Costumo conversar com as mães, mas muitas estão focadas na competitividade”, afirma. Às tradicionais aulas de natação, futebol, balé e inglês somam-se agora atividades mais diversificadas, como cursos de japonês e chinês, história da arte, etiqueta, sem falar no mercado de professores particulares que preparam alunos para os “vestibulinhos”, as provas de admissão nos colégios mais concorridos.

Neste mundo competitivo, as escolas se adaptam. Na Escola Internacional de Alphaville, num condomínio de classe média alta de São Paulo, crianças de 3 e 4 anos têm aulas sobre artistas como Miró, Van Gogh e Pollock. As aulas são apresentadas como uma forma de os alunos “apreciarem a obra e o fazer artístico e refletirem sobre o percurso de criação do artista”.

A professora Cássia Bessa, coordenadora do projeto, diz que a diferenciação entre as crianças se dá cada vez mais cedo. “Há uma demanda social por isso, é a evolução natural.” Na Escola de Educação Infantil Ponto Omega, também em São Paulo, há um curso de etiqueta para os pequenos. São quatro módulos sobre como eles devem se comportar: “em casa”, “na escola”, “no clube” e “no restaurante”.

Com uma agenda tão cheia, quando as crianças estão em casa, o tempo é de brincadeira, certo? Mais ou menos. Muitos pais gostam que, em vez do divertimento totalmente livre, haja entretenimento dirigido e programas didáticos. Tarsila Naylor, de 4 anos, e seu irmão Thales, de 2, moradores de Niterói, no Rio de Janeiro, fazem balé, natação, capoeira, iniciação musical e vivência religiosa. Em casa, desde muito pequenos assistem aos DVDs da série Baby Einstein, que são divididos em faixa etária e falam de natureza, ciência e artes. (Há dois anos, uma pesquisa da Universidade de Washington demonstrou que bebês que assistem a esses programas aprendem menos palavras que os que não assistem, mas isso é outra história.) Os irmãos também veem vídeos de histórias infantis em seis línguas diferentes, para ir se acostumando com a sonoridade.

“O que ninguém pode roubar de uma pessoa é o conhecimento”, diz o fiscal de tributos Carlos Mauro Naylor, pai das crianças. “Quando crescerem um pouco mais, vão entrar num curso de mandarim”.

Depoimento

“Meu filho não é um marginal”

Como uma família conseguiu superar os problemas de indisciplina e domar o filho adolescente considerado incorrigível pelas escolas

Durante uma discussão de alunos da 7.ª série, Thiago teve uma reação que chocou a todos na escola. Ele atravessou a mão do colega com um compasso, um instrumento de desenho usado em aulas de geometria. O episódio resultou na expulsão de Thiago. Queixas sobre seu mau comportamento e impulsividade já eram frequentes. Dois anos depois, o rapaz foi novamente “convidado a se retirar” de um colégio. Dessa vez, Thiago usou um estilete para ameaçar um estudante. As causas dessa violência tem explicações vagas. “Eu não ia com a cara deles”, diz o adolescente, de forma lacônica.

Thiago está na quarta escola. Aos 16 anos, coleciona centenas de advertências. “Eu tinha uma caixa de sapato cheia de bilhetes da coordenação que eu nunca entreguei.” Márcia, a mãe, se surpreende. “Como assim, escondeu?! Tinha mais?”

Os pais passaram quatro anos sem entender o comportamento do filho. A família apelava para broncas, castigos, até algumas surras. A repressão deixava Thiago mais agressivo. No auge dos conflitos, o pai o colocou para trabalhar em um lava a jato. “Eu queria mostrar que, se ele não estudasse, esse era o emprego que ia conseguir”, diz Pedro, o pai.

Thiago está fora do perfil de criança excluída que se envolve em brigas por problemas sociais. Ele mora em um condomínio luxuoso, os pais têm empregos bem remunerados e vivem um casamento estável. A família discute o problema do filho de forma aberta. Os pais o levaram a quatro psicólogos, na tentativa de entender por que Thiago agia daquela forma. Ao final dessa peregrinação, ele foi diagnosticado como portador do transtorno de déficit de atenção (TDAH), uma alteração no cérebro que influencia na capacidade de prestar atenção, ter memória, autocontrole, organização e planejamento. Estudos sugerem que cerca de 40% dos portadores de TDAH não terminam os estudos.

O diagnóstico não impediu a segunda expulsão. “A escola sabia que ele tinha TDAH e tomava medicação, mas mesmo assim continuaram a tratá-lo apenas como uma pessoa má”, diz a mãe. Além da expulsão, a direção do colégio fez uma denúncia ao Conselho Tutelar. Uma assistente social advertiu que Thiago poderia ir parar na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, a Febem (atual Fundação Casa). “Transformaram meu filho em um marginal”, diz Pedro. Os pais decidiram buscar um colégio especializado em problemas de aprendizado.

Hoje, Thiago não é mais protagonista de episódios violentos. Ele está concluindo o ensino médio e faz planos para o vestibular. “Quero estudar robótica, vou fazer um robô para trabalhar para a minha mãe”, diz, enquanto abraça Márcia.

Em casa, as discussões sobre brigas e agressões acabaram. Os conflitos ainda existem, mas são sobre questões comuns, como o dever de casa e as horas na internet. Para a família, a transformação ocorreu por dois fatores: os anos de terapia e a descoberta de uma escola especializada em problemas de comportamento. “Antes, eu tinha vergonha de ir às reuniões de pais, pois meu filho era tido como um problema sem solução. Falaram tanto de inclusão, mas pessoas como Thiago ainda são rotuladas como inadequadas e descartadas”, diz Márcia.

Texto extraído da Revista Época, de 13/04/2009